15/07/2016

Habeas corpus. Homicídio praticado na condução de veículo automotor.


PENAL
Habeas corpus. Homicídio praticado na condução de veículo automotor. Prisão cautelar que se mostra como exceção no nosso sistema. Análise sob a ótica da Lei nº 12.403/2011. Inexistência de elementos que, concretamente, justifiquem a prisão preventiva. Liminar deferida. Suficiência das medidas do art. 319, incisos I, II e IV, do CPP e art. 294 do CTB. Parecer favorável da d. Procuradoria-Geral de Justiça. Liberdade provisória concedida. Ordem concedida (voto nº 29.193) (TJSP – 16ª Câmara de Direito Criminal, Habeas Corpus nº 2060452-83.2016.8.26.0000, Rel. Des. Newton Neves, j. 7/6/2016, v.u.).
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº 2060452-83. 2016.8.26.0000, da Comarca de Araçatuba, em que é paciente L. J., impetrantes A. Z. T., G. P. D. V. e E. J. T.
Acordam, em 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Concederam a ordem para outorgar a liberdade provisória ao paciente, mediante imposição das medidas do art. 319, incisos I, II e IV, do CPP e art. 294 do CTB. Comunique-se. Oficie-se o juízo para que seja o paciente intimado de todas as medidas cautelares impostas, bem como para entregar sua carteira nacional de habilitação em juízo, oficiando-se ao órgão de trânsito responsável a respeito da medida do art. 294 do CTB. v.u.
Compareceu na sessão de julgamento a doutora G. P. D. V., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos exmos. desembargadores Guilherme de Souza Nucci (presidente) e Leme Garcia.
São Paulo, 7 de junho de 2016
Newton Neves
Relator
Relatório
Cuida-se de pedido de habeas corpus impetrado em favor de L. J., alegando os impetrantes, em síntese, sofrer o paciente constrangimento ilegal por ato do juízo que revogou a fiança arbitrada pela autoridade policial e decretou a prisão preventiva.
Sustentam a ilegalidade do decreto da prisão preventiva porque desprovida a decisão de fundamentação idônea, calcada que está na gravidade em abstrato do delito, na periculosidade presumida do paciente, no alegado risco de descrédito das instituições, além do risco de fuga sem mencionar elementos concretos que permitam concluir por essa intenção e na possibilidade de risco à instrução por não ter o paciente se submetido ao teste do bafômetro ou fornecido sangue para realização de perícia.
Alegam, ainda, ser absolutamente desproporcional a manutenção da prisão preventiva por serem suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão para sanar os riscos apontados pela autoridade coatora.
Pedem a concessão da ordem para que o paciente possa responder ao processo em liberdade e, subsidiariamente, a aplicação de medida cautelar diversa da prisão.
A liminar foi deferida, mediante imposição das medidas cautelares do art. 319, incisos I e IV, do CPP (fls. 104/106).
As informações foram prestadas (fls. 111/114).
A d. Procuradoria-Geral de Justiça propôs a concessão da ordem para acolher o pedido subsidiário, substituindo-se a prisão preventiva pelas medidas cautelares do art. 319, inciso II, do CPP, art. 294 do CTB e fiança de cem mil reais (fls. 214/218).
É o relatório.
Voto
A ordem deve ser concedida.
O paciente foi preso em flagrante, foi posto em liberdade sob fiança, e depois foi decretada a prisão preventiva no Plantão Judiciário porque, conforme as informações prestadas e as cópias do inquérito policial, no dia 12/3/2016, por volta das 17h45min, no cruzamento da Av. …, Comarca de Araçatuba, na direção de veículo automotor, em velocidade incompatível com a via pública, matou A. J. D.
L. conduzia seu automóvel …, pela avenida em velocidade aproximada de 200 km/h, segundo testemunhas e conforme o exame clínico sob o efeito de álcool, quando no cruzamento atingiu o automóvel … conduzido pela vítima A., que morreu no local.
Preso em flagrante, L. se negou a se submeter ao teste etilômetro e de sangue, sendo submetido a exame clínico que concluiu que ele estava alcoolizado.
A autoridade policial capitulou o fato à norma penal do art. 302 do CTB (homicídio culposo na direção de veículo automotor) e ao art. 311 do CTB (tráfego em velocidade incompatível). Arbitrou fiança de R$ 17.600,00, valor que foi recolhido, e posto L. em liberdade.
No dia seguinte, o Ministério Público entendeu ter L. cometido o crime de homicídio com dolo eventual e requereu, por isso, a conversão da prisão em flagrante em preventiva, vindo o juízo a decretar a combatida prisão preventiva em 13/3/2016.
Erigiu o d. magistrado que “o crime praticado pelo indiciado causou grave ofensa à sociedade, na medida em que foi praticado em uma das principais vias públicas desta cidade, em horário com grande movimento de carros e pedestres, tendo vitimado pessoa que gozava de grande reputação na cidade, pois era comerciante estabelecido em Araçatuba há muitos anos. A permanência do indiciado em liberdade levaria ao total descrédito das instituições que compõem o sistema da Justiça, podendo, inclusive, instigar a prática de condutas semelhantes.
Pelas características da ocorrência policial, pode-se afirmar que o autuado agiu com audácia e destemor, denotando periculosidade, pois utilizou veículo para a prática de delito, mesmo estando alcoolizado.
Uma das testemunhas, aliás, afirmou que populares impediram o autuado de deixar o local do acidente, revelando que, caso em liberdade, haveria o risco de deixar o distrito da culpa, furtando-se da aplicação da lei penal” (fls. 195/197).
Posteriormente foram indeferidos pedidos de revogação da prisão preventiva (fls. 206/207 e 208).
Diante desse contexto, e pelo meu voto, a ordem deve ser concedida.
A Lei nº 12.403/2011 trouxe medidas cautelares que complementam a efetivação da prisão processual como exceção, em consonância com a constitucional previsão da presunção de inocência (Constituição da República, art. 5º, inciso LXVI – “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”).
O Título IX do CPP prevê medidas cautelares diversas da prisão processual, conferindo ao magistrado a possibilidade de efetivar os motivos da excepcional prisão cautelar sem que se imponha a segregação provisória antes do trânsito em julgado de eventual condenação (CR, art. 5º, […] incisos LXI, LXIII, LXIV, LXV e LXVI – “LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; […] LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;”).
Prevê o art. 310 do CPP, em seus incisos, que ao receber o auto de prisão em flagrante deve o magistrado, de modo fundamentado (art. 93, inciso IX, CR): relaxar a prisão ilegal; ou converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312, CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319, CPP); ou conceder ao flagrado a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Permanece vigente e plenamente aplicável a prisão preventiva se atendidos os requisitos do art. 312 do CPP (“A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”), se presente justa causa e acaso não tenha o agente praticado fato típico sob excludente de ilicitude (art. 314 do CPP – “A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal”), possível, ainda, nas hipóteses dos incisos do art. 313 do CPP (“Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos; II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;”).
A conveniência da prisão cautelar, como já decidiu o STF (RT 124/1033), deve ser regulada pela sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente à ação criminosa. Não se trata tão só do senso geral de reprovação de determinado crime, sob prisma abstrato. Trata-se, na verdade, da aferição, pelo magistrado, das características do réu extraídas a partir do estudo da empreitada criminosa, pela cuidadosa leitura dos elementos trazidos aos autos.
No caso dos autos revelam-se suficientes as medidas cautelares diversas do cárcere provisório.
A prisão cautelar, como sabido, é exceção no nosso sistema jurídico.
Deve ser decretada quando se revelarem insuficientes – para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, da aplicação da lei penal ou da instrução processual – as medidas cautelares diversas da prisão.
É o que se afere do comando do art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.403/2011: “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”.
Nesse contexto, preservado o convencimento do representante do Ministério Público, em constitucional exercício da atribuição de ser o titular da ação penal pública incondicionada, bem como eventual decisão do d. juízo acerca do recebimento de eventual denúncia que venha a ser oferecida, no âmbito da análise da legalidade do ato atacado, proferido nos termos do art. 310 do CPP, verifica-se que a decisão reveste-se de ilegalidade.
A gravidade em abstrato do delito, conforme sedimentado pelos tribunais superiores, não serve de suporte à prisão preventiva.
Assentou o Supremo Tribunal Federal que “Segundo remansosa jurisprudência desta Corte, não basta a gravidade do crime e a afirmação abstrata de que os réus oferecem perigo à sociedade e à saúde pública para justificar a imposição da prisão cautelar. Assim, o STF vem repelindo a prisão preventiva baseada apenas na gravidade do delito, na comoção social ou em eventual indignação popular dele decorrente, a exemplo do que se decidiu no HC nº 80.719-SP, relatado pelo ministro Celso de Mello” (HC nº 110132-SP, j. 16/10/2012).
No mesmo sentido: STJ, 6ª T., HC nº 266.736-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 2/5/2013; STJ, 5ª T., HC nº 240.939-RN, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 18/9/2012.
Além disso, a comoção social e a repercussão do crime também não servem de motivação, de fundamentação para a imposição da excepcional prisão preventiva.
Nesta direção: “A fundamentação declinada pelo magistrado de primeiro grau não indicou de que forma a liberdade do paciente colocaria em risco a ordem pública, a conveniência da instrução criminal ou a aplicação da lei penal. Procurou alicerçar a medida constritiva na gravidade abstrata do crime consubstanciada em expressões genéricas do tipo ‘apreensão no meio social’, ‘reflexos negativos e traumáticos na vida da sociedade’, ‘sentimento de impunidade e de insegurança’, não afirmando, concretamente, de que forma a liberdade do paciente colocaria em risco a ordem pública. 3 – Ademais, o fato de o delito ter sido amplamente noticiado na imprensa local e estadual não é, por si só, fundamento suficiente para a determinação de segregação cautelar” (STJ, HC nº 206.726-RS, j. 6/9/2011).
Além disto, não se sustenta a prisão sob o pilar de se manter o crédito da instituição, na medida em que o Poder Judiciário não deve se curvar ao clamor popular, fiel que deve ser, unicamente, à aplicação da lei ao caso concreto submetido a julgamento.
Da conduta do paciente constata-se que não representa risco à ordem pública de modo a ser imprescindível que responda preso ao processo.
Porém, do caso dos autos, impõe-se como necessária a medida cautelar de suspensão da habilitação para condução de veículo automotor, proibido o paciente, sob as penas do art. 312, parágrafo único, do CPP, de dirigir veículo automotor durante o curso das investigações e eventual processo, nos termos do art. 294 do CTB (“Em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a garantia da ordem pública, poderá o juiz, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção”).
A suspensão é necessária e adequada diante do evento que causou a morte da vítima enquanto, ao que consta dos autos, L. assumiu a condução de carro capaz de atingir rapidamente elevada velocidade, quando estava alcoolizado, e em via cuja velocidade máxima, ao que consta, é de 60 km/h, imprimiu a absurda velocidade de 200 km/h, de modo que não pode, enquanto perdurar a investigação e eventual processo, assumir a condução de veículo automotor para que se preserve a ordem pública, evitando-se, deste modo, concreta possibilidade de recidiva.
Além disso, e para a garantia da aplicação da lei penal, necessária se faz a imposição da medida cautelar de proibição de frequência a bares e estabelecimentos congêneres, onde se promova a venda e consumo de bebidas alcoólicas (art. 319, inciso II, do CPP), como zelosamente proposto pela d. Procuradoria–Geral de Justiça, por judicioso parecer de lavra do doutor Paulo Reali Nunes, na medida em que, mais vezes preservado o convencimento do Ministério Público e eventual recebimento, ou não, de possível denúncia, demonstrou que a ingestão de bebidas alcoólicas o levou a estado que claramente colocou em risco a incolumidade pública, a vida e a integridade física alheia.
Necessária também, nos termos da decisão liminar, a proibição de deixar a comarca em que reside sem prévia autorização judicial, comparecendo periodicamente em juízo para justificar suas atividades e manter atualizado endereço onde possa ser encontrado para intimações judiciais.
Concedida a liberdade provisória ao paciente, ciente estará da reversibilidade da medida, possível o decreto da prisão preventiva pelo descumprimento de qualquer das medidas impostas, conforme o claro comando do art. 312, parágrafo único, do CPP.
Ante todo o exposto, e pelo meu voto, concedo a ordem para outorgar a liberdade provisória ao paciente, mediante imposição das medidas do art. 319, incisos I, II e IV, do CPP e art. 294 do CTB.
Comunique-se. Oficie-se ao juízo para que seja o paciente intimado de todas as medidas cautelares impostas, bem como para entregar sua carteira nacional de habilitação em juízo, oficiando-se ao órgão de trânsito responsável a respeito da medida do art. 294 do CTB.
Newton Neves
Relator